"Me transformaram num marginal", diz sargento que assumiu ser gay

Dayanne Sousa
"De uma hora para outra, o Exército me transformou num marginal". O lamento é de Fernando Alcântara de Figueiredo, sargento que viu sua vida virar de cabeça para baixo depois que a instituição militar descobriu sua relação homossexual com o também sargento Laci Marinho de Araújo. Hoje na reserva, os dois entraram com um pedido na OEA (Organização dos Estados Americanos) para se refugiarem fora do Brasil e se protegerem de ameaças.
O casal ficou conhecido após assumir a homossexualidade à imprensa em 2008. Em entrevista a Terra Magazine, Figueiredo afirma que a atitude não foi um ato de coragem, mas um esforço pela sobrevivência.
- O que a gente conseguiu com aquela exposição foi uma divulgação muito grande que nos preservou vivos até hoje. Isso é fato.
Os dois enfrentaram processos na Justiça Militar e chegaram a ser condenados à prisão. Laci denuncia que foi torturado e se aposentou depois de reconhecido que ele tem epilepsia. Segundo Figueiredo, o companheiro ainda teve agravado um quadro de depressão por conta da tortura. Figueiredo deixou de servir ao Exército ainda em 2008 e não recebe aposentadoria.
- Saí da forma como entrei. Mas, olha, não me arrependo. A gente aprende muita coisa importante. Esse sentimento de amor à Nação é próprio, não é uma propaganda. Mas quando acontece alguma coisa, todo o seu profissionalismo vai por água a baixo. Eu tinha medalhas, reconhecimento, elogios... Tudo isso foi desmerecido de uma hora para outra.
Além do tal sentimento de amor ao Brasil, tão pregado pela instituição que o descartou, Figueiredo diz que ainda carrega "vocação plena para as Forças Armadas": 
- Qual é a dimensão e a validade de um sangue de um homossexual emcomparação com o de um hétero? Eu acredito que é a mesma. Se eu estou disposto a preservar a defesa do meu País, eu acredito que isso tem que ser valorizado pela população.
Leia a entrevista
Terra Magazine - O que levou você a pedir refúgio em outro país?
Fernando Alcântara de Figueiredo - Nós temos recebido telefonemas anônimos, algumas abordagens na internet... E das últimas semanas até agora, isso se intensificou. Comuniquei isso à Presidência da República em janeiro de 2011. Não vimos respaldo nenhum do governo. E fomos vítimas de violência física na rua por duas pessoas que tinham aparência de militar, amigos nossos dizem que há incitação por meio do comando para que nos agridam. Eles dizem que sujamos a imagem do Exército e que ali agora é um antro de homossexuais. Um discurso muito preconceituoso. Tomamos essa decisão de pedir refúgio porque o governo brasileiro teve todas as oportunidades de tomar uma atitude e não o fez. A gente não viu outra saída. Pedimos socorro diversas vezes e chegamos ao nosso limite.
A imagem que o povo tem é que o militar é aquele que aprende a amar o País. Você, depois de tudo isso, desistiu do Brasil?
Eu não desisti do Brasil, tampouco da luta. O que eu não aceito é a covardia. As pessoas falam pra mim que assumir a homossexualidade foi um ato de coragem. Eu prefiro dizer que foi um ato de resistência. Nós não tínhamos nenhuma bandeira. Foi um ato de sobrevivência. Mas agora existem situações que eu não posso prever, não posso lidar com a possibilidade de estar numa rua, num shopping e a pessoa vir me agredir.
Você diz que assumir a homossexualidade foi um ato de sobrevivência, mas você acredita que depois disso sua vida mudou? Ficou melhor ou pior?
O que a gente conseguiu com aquela exposição foi uma divulgação muito grande que nos preservou vivos até hoje. Isso é fato. E a gente acabou beneficiando outras pessoas. O Exército tenta pregar isso, mas é impossível crer que exista apenas um casal homoafetivo nas Forças Armadas. A gente tem um efetivo pra lá de 300 mil homens... é inadmissível que você acredite que só exista eu e Laci de homossexuais. Quando não é possível condenar essas pessoas na Justiça Militar por pederastia*, elas são condenadas por qualquer outra coisa. Foi o que aconteceu com Laci, ele foi condenado por deserção.
*Obs: O artigo 235 do Código Penal Militar considera crime a pederastia, definida como "praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar".
Como foi para vocês enfrentar o julgamento de um Tribunal Militar?
O Laci sofreu um espancamento dentro das instalações do pelotão e eu denunciei isso. Fui condenado a oito meses de cadeia e o Laci há um ano e três meses. A Justiça Militar é um grande monstro. Todos os processos a gente sempre perde, porque o discurso é sempre de que nós estamos prejudicando a imagem das Forças Armadas. Não é fácil duas pessoas enfrentarem uma Justiça que trabalha em prol dos militares. O Laci sofreu tortura psicológica e maus tratos quando estava preso.
Você sente que foram forçados a deixar o Exército?
No meu caso, sim. Eles instauraram um processo para me expulsar. É um processo administrativo no qual eles te declaram indigno de usar a farda. Como isso poderia durar anos, a única saída era pedir pra ir embora. Também pedimos a saída do Laci, mas eles não aceitaram porque, como civil, não poderiam puni-lo após a condenação por deserção. O resultado é que continuamos com o Laci na ativa.
Quanto tempo você serviu?
Somando tudo, foram 16 anos nas Forças Amadas. Servi durante quase três anos à Força Aérea antes de ir para o Exército.
Ainda se lembra por que você decidiu ser militar?
Eu não tenho vergonha de falar, mas na época foi uma visão muito infantil mesmo. Eu via aquela coisa bonita, aquele idealismo. Você é levado por esse sentimento e só depois descobre que não é bem aquilo. Mas você está certo de que é um profissional. Pensei que era isso que eu sabia fazer e que tinha que continuar. Por isso fiz o concurso pra sargento. Foi aí que eu conheci o Laci, estamos juntos desde 1997. Bastante tempo.
Dezesseis anos servindo e você teve que deixar o ofício sem nada?
Sem nada, saí da forma como entrei. Mas, olha, não me arrependo. A gente aprende muita coisa importante. Esse sentimento de amor à Nação é próprio, não é uma propaganda. Mas quando acontece alguma coisa, todo o seu profissionalismo vai por água a baixo. Eu tinha medalhas, reconhecimento, elogios... Tudo isso foi desmerecido de uma hora para outra. De uma hora para outra, o Exército me transformou num marginal.
Você e Laci hoje tem um papel de ativistas, trabalhando numa instituição que combate crimes de ódio. Você acha que este tipo de crime é um grande problema no Brasil? Que tipo de mensagem você gostaria de deixar?
Eu costumo dizer pras pessoas que, seja lá o que for que elas pensem sobre a homossexualidade, elas têm que ponderar. Qual é a dimensão e a validade de um sangue de um homossexual em comparação com o de um hétero? Eu acredito que é a mesma. Se eu estou disposto a preservar a defesa do meu País, eu acredito que isso tem que ser valorizado pela população. Porque eu estou disposto a defender todos os outros que não querem ser militares. Eu tenho vocação plena para as Forças Armadas e até penso que posso me alistar em outro país agora.

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